Entrevista: “Existe muita coisa camuflada, como o racismo”, diz intérprete do “Anjo Negro”

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O barítono David Marcondes, diante do Teatro Guaíra.

A ópera “Anjo Negro”, baseada numa das peças de teatro que marcou a carreira de Nelson Rodrigues, ganha pela primeira vez uma montagem no Paraná. O Teatro Guaíra recebe esta super produção nos dias 29, 30 e 31 de agosto, com uma montagem que envolve mais de 100 profissionais da música e artes cênicas.

Composta pelo maestro João Guilherme Ripper a partir do texto visceral e polêmico de Rodrigues, tem direção de Jul Leardini e produção de Jewan Antunes. O elenco vem com grandes vozes da música erudita brasileira, acompanhados pela Orquestra Filarmônica da Universidade Federal do Paraná e músicos convidados.

Um dos protagonistas, o cantor mineiro David Marcondes, barítono e solista do Teatro Municipal de São Paulo, concedeu esta entrevista exclusiva para a Folha de Curitiba. Nela, fala do personagem e da temática do espetáculo, que denuncia de forma contundente temas como racismo e violência contra a mulher. “O texto, escrito em 1946, continua muito atual, infelizmente”, como conta o artista.

Na montagem, Marcondes interpreta Ismael, que é casado com Virgínia (vivida por Luciana Melamed, cantora da Camerata Antiqua de Curitiba). Os dois personagens vivem uma relação doentia e trágica, que disseca e expõe problemas graves que ainda marcam a sociedade brasileira.

O elenco traz ainda os cantores Sidney Gomes, Ana Paula Machado, Márcia Kaiser, Renata Bueno, Sabrina Bisch, Natália Pascke, Juares de Mira, Paulo Barato e Claudio de Biaggi.

Confira a entrevista: 

David, qual sua formação artística?

Minha formação é uma formação antes de tudo nos palcos. Inicialmente, cursei o Conservatório Federal de Música e participei de estúdios para a formação de cantores líricos da Universidade Federal de Minas, ambos em Belo Horizonte, onde nasci. Depois, saí pelo mundo aperfeiçoando. Porque eu acho que o aperfeiçoamento do cantor e do ator se dá principalmente nos palcos. Canudo e diploma não fazem diferença, mas quando ele tem a oportunidade de estar nos palcos, isso faz a diferença na carreira.

Você já se apresentou no Teatro Guaíra antes?

Eu fiz uma outra grande produção aqui, há uns dez anos, que foi “Carmen”, de Bizet. Acredito que foi a maior produção de Carmen que esse país já teve, com o maestro Alessandro Sangiorgi. Naquela ocasião tive a oportunidade de conhecer o Guairão e agora é um prazer imenso estar retornando a essa cidade maravilhosa, com uma nova obra tão grandiosa. Estou muito feliz de estar nesta nova produção!

Como é para você a sensação de estar nesse papel de Ismael em “Anjo Negro”?

É uma responsabilidade muito grande. Não só minha, por ser um dos protagonistas, mas de toda a equipe: orquestra, coral, atores, maestro. Todo este conjunto de artistas vai carregar uma mensagem muito importante. Nossa missão com este trabalho é despertar a consciência nas pessoas. Eu vejo que existe muita coisa camuflada na sociedade brasileira, como o racismo, machismo e a pedofilia. A gente sabe que existe a “deep web” da vida, a gente sabe que acontece um monte de coisa, e a gente vive a nossa vida secular normal sem que nada aconteça. Eu acho que trazer à tona esses temas é fundamental. Vai trazer um despertar, vai trazer uma discussão maior do que é o interior do ser humano, como ele pensa. Por que ainda existe racismo? Por que ainda existe a pedofilia? Será que o ser humano não evoluiu nisso? Então quando se traz uma discussão, quando se traz à tona um tema como esse, se abre uma grande margem de pensamentos para todos nós. Onde nós estamos? Por que pensamos assim ainda? Será que toda essa tecnologia que está ao nosso redor não nos fez evoluir? Ou nunca fará? Então eu acho que realmente é para constranger e nos levar a pensar: Quem realmente nós somos? O que pensamos? O que somos como essência? Discutir esses temas é uma evolução.

Quem é o Anjo Negro em questão?

Esta ópera é uma obra do maestro e compositor João Guilherme Ripper, que musicou e orquestrou o texto da peça original do Nelson Rodrigues. Na realidade, quando se fala em “O Anjo Negro”, a gente não vai saber exatamente na peça quem realmente é ele. Não é porque a figura do Ismael é um homem negro que ele é o Anjo Negro. O enredo então questiona: a figura do anjo negro representa o que para cada um de nós? O Anjo Negro pode ser a Virgínia, pode ser a tia, pode ser o irmão, pode ser vários personagens…

Pode falar um pouco mais sobre o enredo?

O enredo dessa peça é o seguinte: Ismael é um negro que não se aceita como negro. Ele não aceita sua cor e, sabe o porquê? Bem, todos nós sabemos o que foi a trajetória do homem e da mulher negra neste mundo… todo mundo sabe. Talvez não se fale muito, mas todo mundo sabe. Então o Ismael carrega essa carga psicológica. Além disso, ele tem um trauma terrível com as mulheres, também, porque a mãe dele o amaldiçoa, até mesmo antes de morrer. Ele é um homem que se tornou médico e muito rico, mas muito rico mesmo, a ponto de construir um castelo para ele ficar lá o tempo inteiro. Apesar de toda a riqueza, sua cor preta continuava ali em sua pele. Ele não se conforma com isso e a ópera conta a vida dele com sua mulher, Virgínia (vivida por Luciana Melamed).

Como é a relação dos dois?

Não quero contar o final do espetáculo (risos). Mas o relacionamento dos dois já começa de uma forma complicada. Virgínia foi praticamente entregue a Ismael por uma tia, que achou que ela tinha cometido um ato grave. Ismael era o médico da família e aceitou, achando que esta era uma oportunidade para ficar mais perto da vida de um branco. Porque naquela época, nenhuma mulher branca queria ficar com um homem negro, e ele, mesmo sendo rico, não tinha conseguido. Aí entra toda a trama: ele tranca a Virgínia naquele castelo que ele construiu para viverem. Vivem enclausurados e ele controla tudo. E todos os filhos que eles têm aparecem mortos. A ópera começa justamente na morte do terceiro filho, e o desenrolar dessa história vai acontecer a partir daí. Por que esse filho é morto? Por que o Ismael não aceita ser negro? Por que a Virgínia, sendo branca, está com ele? Então eu vou deixar um mistério no ar porque o final é um final bem exuberante, onde as pessoas vão repensar muitas questões do ser humano.

Luciana Melamed e Natalia Pascke durante um ensaio. Foto: Guto Almeida.


Serviço:
Ópera “Anjo Negro”
Data: dias 29, 30 e 31 de agosto de 2023.
Local: Teatro Guaíra – Auditório Bento Munhoz da Rocha Neto (Guairão)
Endereço: R. XV de Novembro, 971 – Centro
Horário: 20 horas
Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia).
À venda no site Disk Ingressos, pelo link: https://www.diskingressos.com.br/grupo/1316/31-08-2023/pr/curitiba/opera-anjo-negro-de-nelson-rodrigues
Classificação: 16 anos


Entrevista por: Daniel Fiedler e Guilherme Ross.

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