O mercado de stablecoins, especialmente em transações realizadas por meio de protocolos descentralizados (DeFi) ou entre partes (P2P), tem sido objeto de discussões jurídicas no Brasil, especialmente após as recentes propostas de alteração na Resolução 277, de 31 de dezembro de 2022, pelo Banco Central. Neste artigo, vamos explorar os impactos dessas mudanças e como elas podem criminalizar algumas operações envolvendo stablecoins, particularmente aquelas realizadas fora do sistema financeiro tradicional, como em mercados OTC, DeFi e P2P.
O que são Stablecoins?
Stablecoins são criptoativos cujo valor é atrelado a uma moeda fiduciária, como o dólar, ou a uma cesta de ativos. No Brasil, as stablecoins mais conhecidas, como a USDT (Tether) e a USDC (Circle), são classificadas na União Europeia como “e-money tokens”. Esses ativos são projetados para manter um valor estável em relação à moeda de referência, garantindo maior previsibilidade para os usuários em um mercado volátil.
De acordo com o Regulamento MiCA da União Europeia, a USDC, por exemplo, é considerada um “e-money token” porque busca estabilizar seu valor a partir de uma moeda oficial, como o dólar. Esse conceito é fundamental para compreender as implicações legais das operações com stablecoins.
A Regulação Proposta pelo Banco Central
O Banco Central tem avançado na regulamentação do mercado de criptoativos, especialmente no que se refere ao uso de stablecoins e outros ativos virtuais. As alterações propostas para a Resolução 277, que visa atualizar as normas de câmbio no Brasil, geram grandes preocupações sobre a criminalização de diversas operações no mercado de criptoativos, especialmente aquelas realizadas via protocolos DeFi ou P2P.
Para entender a complexidade dessas mudanças, é necessário compreender o conceito de “norma penal em branco heterogênea”.
De acordo com o renomado jurista Claus Roxin, as normas penais em branco heterogêneas são aquelas cujos elementos definidores do tipo penal não provêm diretamente do direito penal, mas de outras áreas do direito, como regulamentos administrativos ou normas técnicas. No caso das operações com stablecoins, as novas regulamentações podem tornar ilegais muitas transações realizadas fora do escopo do sistema financeiro tradicional.
O Impacto da Lei 7492/86 e da Lei 14.286/2021
Para ilustrar como essa regulamentação pode ser aplicada, podemos observar a Lei 7492/86.
O artigo 22 dessa lei prevê punição para a realização de operações de câmbio não autorizadas, com pena de reclusão de 2 a 6 anos, além de multa. De acordo com essa legislação, as operações de câmbio realizadas sem a autorização do Banco Central configuram uma infração penal, sujeitando os infratores a penas severas.
Além disso, a Lei 14.286/2021, que regula o mercado de câmbio brasileiro, também impõe que todas as operações de câmbio sejam realizadas apenas por meio de instituições autorizadas pelo Banco Central.
Isso significa que qualquer transação que envolva câmbio, incluindo a compra, venda ou troca de stablecoins, precisa ser realizada por uma instituição regulamentada. Caso contrário, o indivíduo responsável pode ser considerado como praticante de uma operação de câmbio não autorizada, sujeitando-se às penalidades previstas.
As Propostas do Banco Central e os Protocolos DeFi
Dentro dessa lógica regulatória, a proposta de alteração na Resolução 277 inclui uma ampla gama de atividades relacionadas ao mercado de criptoativos, como a compra, venda, troca, transferência e custódia de ativos virtuais.
A questão central surge quando confrontamos essas propostas com a legislação atual, como o artigo 3º da Lei 14.286/2021, que exige que todas as operações de câmbio sejam realizadas por meio de instituições autorizadas pelo Banco Central.
Ora, se as stablecoins forem tratadas como parte do mercado de câmbio, então qualquer operação envolvendo esses ativos, realizada sem a intermediação de uma instituição autorizada, poderia ser considerada ilegal, resultando em penalidades severas, incluindo prisão.
A Criminalização das Operações via DeFi ou P2P
Em particular, as operações realizadas por meio de protocolos DeFi (finanças descentralizadas) ou plataformas P2P, que operam fora do sistema financeiro tradicional, poderiam ser afetadas diretamente por essas mudanças regulatórias. Como esses protocolos não são instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central, os indivíduos que realizarem transações com stablecoins por esses meios poderiam ser responsabilizados penalmente, incorrendo em penas de reclusão de 2 a 6 anos, além de multa, conforme prevê a Lei 7492/86.
Possíveis Soluções para a Regulamentação
Diante desse cenário, uma possível solução seria reclassificar as operações com stablecoins, de modo que não sejam tratadas como operações de câmbio.
Uma alternativa também seria adotar um ponto intermediário, como propôs o Deputado Lafayete de Andrada no anteprojeto de Lei Complementar que visa regulamentar o mercado de criptoativos. O parágrafo único do artigo 12º dessa proposta estabelece que as operações realizadas no mercado de balcão, mesmo que envolvam a troca de criptoativos entre contrapartes internacionais, não seriam consideradas operações de câmbio.
Esse tipo de abordagem poderia proporcionar maior clareza e segurança jurídica para os participantes do mercado de criptoativos, permitindo que as transações realizadas via protocolos DeFi ou P2P não sejam criminalizadas, desde que atendam a certos critérios.
Conclusão
As propostas de alteração na Resolução 277 do Banco Central podem ter um impacto profundo no mercado de stablecoins no Brasil, especialmente em operações realizadas por meio de protocolos DeFi e plataformas P2P. Embora o objetivo da regulamentação seja aumentar a segurança e a transparência nas transações de criptoativos, é essencial encontrar um equilíbrio para evitar que operações legítimas e inovadoras sejam penalizadas. O caminho mais prudente pode ser reconsiderar a classificação de transações com stablecoins ou buscar um modelo de regulação que permita o crescimento saudável do mercado sem comprometer os princípios de legalidade e segurança jurídica.
Fernando Lopes é advogado, foi um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Foi professor de Direito e Processo Penal na Universidade Tuiuti do Paraná, professor de tecnologia blockchain na EA Banking School, sendo autor e coautor de livros sobre o mercado de criptoativos, um deles indicado na bibliografia de criptomoedas do Superior Tribunal de Justiça. É também cofundador do escritório LOPES E ZORZO, primeiro do Brasil especializado em tokenização e DEFI.
Marcella Zorzo é advogada, especialista em tokenização de ativos, coautora do livro “ O Guia Jurídico da Tokenização”. Cofundadora do escritório Lopes e Zorzo, onde atua na estruturação jurídica de operações societárias internacionais complexas, envolvendo jurisdições favorecidas, além de grandes operações no agronegócio.