Quando o crime organizado avança sobre o Estado e o mercado
A criminalidade organizada brasileira progride, evoluindo muito além das práticas tradicionais. Hoje, suas estruturas se aproximam de corporações empresariais, com planejamento, diversificação nas atividades, divisão de tarefas e especialização em setores específicos. Essa profissionalização vem permitindo ao crime organizado infiltrar-se, de forma sorrateira e, eventualmente lícita, em áreas antes inimagináveis — inclusive em serviços públicos e estratégicos, que deveriam representar o núcleo de segurança e eficiência do Estado.
São Paulo, 2014. Investigações conduzidas pela minha equipe de então na Polícia Federal, comprovaram que o PCC mantinha cooperativas de transporte urbano atuando sob contratos milionários em municípios paulistas. Os ônibus eram registrados em nome de laranjas, pessoas humildes em comunidades carentes, e as empresas funcionavam de forma regular apenas na aparência. Na prática, eram utilizadas para lavagem de dinheiro, controle territorial e obtenção de influência política local. Era a demonstração de que o crime organizado já não se limitava ao binômio narcotráfico e lavagem, mas buscava força e legitimidade institucional por meio da penetração em contratos públicos.
O fenômeno se repete, agora de forma mais sofisticada, em setores tecnológicos e sensíveis. Durante as investigações do assassinato do delegado Ruy Ferraz Fontes, surgiram informações de que empresas de videomonitoramento com possíveis ligações com o crime organizado têm buscado operar sistemas de “muralha digital” em municípios paulistas, tentando participar de processos licitatórios. Essa disputa por espaço em um setor tão estratégico possui peso e tamanho suficientes para compor uma das causas que motivaram sua execução, dado o impacto que tais contratos representam para o domínio territorial e financeiro da facção. O risco ultrapassa o aspecto econômico: significa entregar dados estratégicos de segurança urbana e inteligência criminal a estruturas potencialmente contaminadas por interesses ilícitos, com conseqüências incomensuráveis.
Tanto o poder público quanto a iniciativa privada precisam adotar mecanismos mais rigorosos de verificação, rastreabilidade e controle de origem dos seus recursos e serviços. No campo legislativo, é urgente discutir ferramentais legais que impeçam a contratação de empresas com vínculos diretos ou indiretos com organizações criminosas, ampliando as exigências de compliance, transparência societária e due diligence criminal. Licitar, somente, já não é suficiente.
Da mesma forma, cabe às empresas privadas reforçar suas áreas de compliance e inteligência corporativa, desenvolvendo mecanismos capazes de identificar e mitigar riscos de associação com recursos de origem duvidosa — sejam eles investimentos, capital, contratos, tecnologia ou recursos humanos. Nenhuma estrutura empresarial moderna pode se dar ao luxo de negligenciar essa análise de integridade, sob pena de comprometer sua própria reputação e sustentabilidade.
As instituições públicas e privadas que não observarem essa necessidade de cautela poderão, diante de uma eventual investigação, sofrer impactos graves em sua operação, além da responsabilização direta de seus gestores pela omissão de medidas preventivas. Casos recentes demonstram isso com clareza — a exemplo dos acordos de leniência firmados no âmbito da operação Lava Jato, que expuseram o custo financeiro, institucional e moral da falta de mecanismos de controle efetivos.
Por sua vez, a administração pública precisa investir de forma permanente no fortalecimento dos setores de inteligência financeira, compliance, controladoria e governança, modernizando seus mecanismos de prevenção e resposta a riscos de infiltração. É igualmente necessária uma revisão da legislação de licitações e contratos públicos, criando ferramentas legais modernas que impeçam, de forma eficaz, a participação de empresas com vínculos com o crime organizado.
O combate à infiltração do crime organizado exige uma resposta iminente e coordenada entre órgãos de controle, setor empresarial e sociedade civil. O perigo maior não está na lavagem de dinheiro, mas em permitir que estruturas criminosas se tornem fornecedoras e executoras do próprio Estado. Impedir isso é uma questão de segurança pública, de defesa institucional e de soberania nacional.
Wagner Mesquita
Consultor na Delta Intelligence LLC