Quando decisões internas encontram os limites da soberania internacional:
Em um episódio que atrai atenção nos círculos jurídicos e diplomáticos, a Trump Media & Technology Group, conglomerado de comunicação ligado ao presidente dos Estados Unidos, Donald J. Trump, e a plataforma de vídeos Rumble, protocolaram uma ação judicial na Corte Federal da Flórida contra o ministro Alexandre de Moraes, integrante da mais alta Corte brasileira.
O centro da controvérsia não se resume a um embate técnico entre ordens judiciais e normas constitucionais. Trata-se, antes, de uma tensão estrutural entre a soberania nacional de um Estado e os princípios fundantes de outro, especialmente no que diz respeito à liberdade de expressão, constitucionalmente protegida nos Estados Unidos por meio da Primeira Emenda.
Segundo a ação, determinadas decisões judiciais brasileiras teriam solicitado o bloqueio de contas e conteúdos mantidos por cidadãos brasileiros atualmente residentes nos Estados Unidos, o que, na visão dos autores do processo, configuraria uma extensão indevida da autoridade nacional para além de suas fronteiras legais.
Um dos casos mencionados envolve o jornalista Allan dos Santos, que, embora fora do território brasileiro, teria sido atingido por medidas que afetaram sua comunicação em plataformas digitais com sede nos EUA. A ação questiona se tais ordens estariam em consonância com os valores jurídicos do país em que os serviços são prestados, ou se estariam tensionando os limites da jurisdição nacional.
Não se trata, portanto, de um julgamento de mérito sobre as razões que motivaram as decisões, as quais são justificadas sob diversas interpretações contemporâneas, mas sim de uma indagação sobre os meios e os limites pelos quais esses objetivos podem ser perseguidos, sobretudo quando envolvem empresas estrangeiras e normas constitucionais de outras nações.
O episódio levanta a reflexão sobre os limites da atuação estatal em ambientes digitais, onde decisões internas podem ter impactos internacionais, e onde o confronto entre o poder das instituições e os direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, se torna ainda mais sensível diante das diferenças entre sistemas jurídicos.
Diante de todo o caso, é inevitável não pontuar que a democracia, em sua complexidade, exige não apenas leis robustas, mas sobretudo moderação no exercício do poder e vigilância constante sobre os limites que garantem sua legitimidade. A história demonstra que o controle excessivo da palavra raramente caminhou ao lado de sociedades verdadeiramente livres, mesmo quando adotado sob o pretexto de proteção institucional.
Exemplos não faltam. Na Hungria, medidas de regulação de conteúdo digital inicialmente justificadas como combate à desinformação foram gradualmente ampliadas até atingir opositores e jornalistas. Na Turquia, o uso reiterado de decisões judiciais para remoção de conteúdo resultou em sanções internacionais e no enfraquecimento da confiança externa. Mesmo democracias consolidadas, como a Índia, enfrentam pressões internas e externas após medidas restritivas às redes sociais terem sido adotadas em momentos politicamente sensíveis.
Esses casos nos ensinam que a linha entre proteção e imposição é tênue, e que toda política de restrição de conteúdo precisa ser cuidadosamente calibrada, sob pena de comprometer os próprios fundamentos da democracia. O exercício do poder, quando transborda seus contornos legais, não fortalece o Estado: o fragiliza.
Diante disso, permanece o questionamento: se democracias estrangeiras alertam para os riscos de decisões judiciais com efeitos extraterritoriais e impactos sobre a liberdade de expressão, não caberia também ao Brasil — com sua tradição jurídica e constitucional — refletir com igual prudência sobre os próprios limites?