sábado, junho 28, 2025

Tokenização Inteligente para Ativos Reais: como a IA e os smartcontracts viabilizarão o futuro sem intermediários

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1. Introdução: o impasse estrutural da tokenização RWA

A tokenização de ativos do mundo real (Real World Assets, ou RWA) é uma das aplicações mais revolucionárias da tecnologia blockchain. Ao permitir a representação digital de ativos tangíveis por meio de tokens, a tokenização promete liquidez, fracionamento, acessibilidade e eficiência. Contudo, para que a tokenização rwa alcance da forma mais perfeita possível os seus objetivos, ou seja, redução de custos de transação e intermediação mediante máxima automação, impende-se integrá-la à inteligência artificial, de modo a resolver seu principal impasse estrutural

Esse impasse estrutural decorre, em grande parte, da dependência de intermediários humanos para viabilizar a legalidade e a segurança das operações: advogados para redigir contratos, cartórios para validar registros, auditores para analisar documentos. Essa dependência tem impedido que a tokenização alcance a escala e velocidade compatíveis com seu real potencial.

Neste contexto, a inteligência artificial surge não apenas como um aprimoramento técnico, mas como uma autêntica arquitetura de viabilização. A IA pode ser capaz de substituir, automatizar ou auxiliar essas funções humanas, ainda que parcialmente, com eficiência, consistência e escalabilidade.

Este capítulo analisa como a integração entre inteligência artificial e smart contracts pode transformar a tokenização de ativos reais em uma realidade operável, segura e juridicamente compatível. Com base em experiências práticas, modelos de negócio e fundamentos teóricos, propomos um novo paradigma: a tokenização inteligente.

2. A crise da intermediação e o papel dos contratos inteligentes

A tokenização de ativos reais surge, em sua origem, como uma tentativa de eliminar intermediários e reduzir custos de transação, conforme descrito por Ronald Coase ao explicar a razão de existirem firmas. Os intermediários, ou seja, cartórios, corretoras, bancos, fundos, existem porque as relações humanas são marcadas por incerteza, assimetria de informações e custos operacionais. A proposta dos contratos inteligentes (smart contracts), portanto, não é apenas informatizar contratos tradicionais, mas suprimir a necessidade de funções humanas custosas por meio de código executável.

Contudo, a promessa dos smart contracts ainda não se realizou plenamente na tokenização RWA. Isso ocorre porque, embora o código possa executar obrigações automaticamente, ele ainda depende de input confiável de informações jurídicas, fáticas e documentais, além de interpretação contextual de normas, títulos e situações. Em outras palavras, apesar do nome, os “smartcontracts” não são inteligentes, mas uma sequência de instruções chamadas de opcodes, que operam sobre valores, com base na lógica implícita na notação polonesa reversa.

É aqui que a inteligência artificial podereconfigurar o papel dos smartcontracts, tornando-os realmente inteligentes. Com efeito, ao integrarmos a IA aos smartcontracts, ainda teremos uma execução de instruções, mas agora baseada em compreensão semântica, jurídica e contextual das informações, que agora também passa a ser realizada por códigos.

Em um aforismo: a IA pode atribuir inteligência aos contratos inteligentes. Com a IA, o contrato inteligente não apenas executa; ele analisa, classifica, decide e interage com documentos, partes e regras.

A verdadeira tokenização inteligente é, portanto, aquela em que a intermediação humana é substituída não apenas por automação, mas por compreensão automatizada. A IA viabiliza contratos que compreendem o direito, interagem com a realidade e executam com autonomia, sem a necessidade constante de verificação humana. É essa inteligência que tornará a tokenização RWA não apenas mais eficiente, mas funcionalmente viável em escala global.

3. Aplicações práticas da IA na tokenização de ativos reais

Neste tópico veremos algumas das possibilidades de uso da IA nos processos de tokenização de ativos reais.

3.1 Geração automatizada de instrumentos jurídicos tokenizáveis

Um dos maiores entraves para a escalabilidade da tokenização de ativos reais é a necessidade de redigir instrumentos jurídicos individualizados, adaptados à natureza do ativo, à jurisdição envolvida e à finalidade da operação. Atualmente, esse trabalho é desempenhado por advogados especializados, cuja atuação, embora fundamental, representa um gargalo em termos de tempo e custo.

A inteligência artificial permite reconfigurar essa etapa por meio da geração automatizada de contratos. Modelos de linguagem treinados com base em contratos previamente validados podem gerar minutas juridicamente compatíveis com a legislação local e alinhadas às exigências da estrutura de tokenização pretendida.

Não se trata de mera automação de modelos prontos, mas de adaptação contextual baseada em dados fáticos e normativos.

Por exemplo, é possível gerar automaticamente um contrato de promessa de compra e venda com uma cláusula de cessão automatizada de créditos lastreados em stablecoin, estruturada para interagir com um smart contract, conforme modelo proposto pela DataCurrency.

Também pode-se produzir uma cláusula de representação jurídica específica para vincular um NFT à relação obrigacional de um contrato subjacente.

Essa automação não elimina a necessidade de supervisão jurídica humana, mas reduz drasticamente o custo marginal de expansão do modelo. Em vez de depender da elaboração artesanal de cada documento, a IA permite gerar contratos que já nascem compatíveis com a execução programada, acelerando o ciclo operacional da tokenização inteligente.

3.2 Due diligence automatizada

Outro ponto de estrangulamento na tokenização RWA está na etapa de due diligence. A análise de documentos como matrícula de imóvel, certidões negativas, contratos sociais, laudos de avaliação e comprovantes de titularidade demanda tempo, conhecimento especializado e apresenta riscos relevantes de erro humano.

Com o uso combinado de OCR (OpticalCharacter Recognition), NLP (Processamento de Linguagem Natural) e modelos de IA treinados para tarefas específicas, é possível digitalizar, compreender e validar automaticamente documentos com alto grau de precisão. A IA pode identificar, por exemplo, a existência de ônus reais na matrícula de um imóvel, verificar se uma certidão está dentro do prazo de validade, ou detectar inconsistências entre os dados apresentados e os registros oficiais.

Além disso, é possível treinar sistemas para identificar situações de risco jurídico: disputas judiciais, pendências fiscais, alienações condicionadas ou cláusulas limitativas de uso. Tudo isso pode ser realizado de forma autônoma, com outputs objetivos e auditáveis, que alimentam a tomada de decisão tanto do emissor quanto do investidor.

A due diligence automatizada reduz drasticamente o tempo de estruturação de uma oferta, minimiza riscos operacionais e contribui para a segurança jurídica da tokenização, tornando o processo mais rápido, confiável e acessível.

3.3 Análise de risco e rating automatizado de tokens RWA

A atribuição de risco a ativos tokenizados é um dos elementos essenciais para a segurança dos mercados secundários e para a tomada de decisão de investidores. No modelo tradicional, a emissão de ratings depende de agências especializadas, que realizam avaliações detalhadas, subjetivas e custosas. Essa estrutura é lenta, onerosa e, muitas vezes, inacessível para emissores de menor porte.

A inteligência artificial permite criar modelos autônomos de análise de risco, treinados com base em grandes volumes de dados históricos, jurisprudenciais e econômicos. Esses modelos podem atribuir uma classificação de risco a um token RWA com base em parâmetros objetivos como localização geográfica do ativo, histórico de liquidez, natureza da relação obrigacional, tipo de garantias envolvidas, grau de judicialização do setor, tempo médio de permanência do ativo em carteira e perfil de inadimplência na região.

Além disso, sistemas de IA podem incorporar atualizações dinâmicas de contexto (como decisões judiciais recentes ou variações do mercado local), oferecendo uma visão mais precisa e responsiva do risco. Com isso, o investidor não depende mais exclusivamente de agências centralizadas e pode tomar decisões embasadas em dados auditáveis e em tempo real.

A análise de risco automatizada amplia a inclusão de emissores, democratiza o acesso ao mercado e torna a tokenização RWA mais segura, transparente e escalável.

3.4 Agentes jurídicos autônomos e interfaces inteligentes

A utilização de agentes autônomos baseados em IA representa um salto qualitativo na interação entre usuários e o ecossistema jurídico-tecnológico da tokenização RWA.

Esses agentes, como o Bobbot, desenvolvido pela DataCurrency, atuam como interfaces inteligentes que mediam a experiência do usuário com os contratos e os ativos tokenizados, oferecendo compreensão jurídica automatizada e suporte operacional em linguagem natural.

O diferencial desses agentes não está apenas na capacidade de responder perguntas ou executar comandos, mas em compreender o contexto normativo, o teor dos contratos e as implicações jurídicas de cada interação. Ao interagir com um token, por exemplo, o agente pode explicar a natureza do ativo subjacente, indicar as obrigações previstas, alertar sobre riscos e, quando autorizado, acionar mecanismos previstos em smart contracts.

Mais do que chatbots, esses agentes funcionam como verdadeiros assistentes jurídicos embarcados no ambiente de tokenização. Eles ampliam a acessibilidade da tecnologia ao permitir que usuários leigos compreendam suas responsabilidades e direitos, e oferecem suporte a decisões complexas com base em regras formais e dados contextuais.

A presença de interfaces inteligentes transforma a experiência de usuário e aumenta a segurança regulatória, pois permite que o ambiente jurídico esteja presente de forma ativa e responsiva em cada etapa da jornada do investidor ou originador. É a justiça automatizada, preventiva e embutida na própria interface da tokenização.

4. A arquitetura do novo direito: quando o código entende o contrato

A integração entre inteligência artificial e smartcontracts inaugura um novo paradigma na teoria e na prática do Direito: um sistema em que o código não apenas executa, mas compreende a estrutura jurídica subjacente às relações obrigacionais.

Trata-se de um deslocamento do Direito como linguagem para o Direito como lógica operacional, capaz de ser traduzida e aplicada por máquinas com base em regras formais e inferências contextuais.

Nesse modelo, o contrato deixa de ser apenas um documento estático redigido em linguagem natural e passa a ser um conjunto de instruções interpretáveis tanto por humanos quanto por sistemas autônomos. As cláusulas são escritas com dupla vocação: devem ser legíveis pelos sujeitos e logicamente compatíveis com a interpretação automatizada. Surge assim a figura do contrato-híbrido, simultaneamente normativo e programável.

Essa arquitetura exige uma nova geração de profissionais jurídicos e técnicos capazes de traduzir institutos clássicos do Direito Civil, Empresarial e Contratual em estruturas compatíveis com smartcontracts e inteligência artificial. Mais do que juristas e desenvolvedores, forma-se o arquiteto do direito programável: aquele que compreende o funcionamento dos sistemas autônomos e o sentido jurídico das obrigações, dos direitos e das condições.

Ao tornar o contrato uma entidade ativa, capaz de reagir, interpretar e agir, a IA não apenas executa comandos: ela transforma o próprio conceito de vigência jurídica. A vigência passa a ser operacionalizada em tempo real, sob critérios objetivos, auditáveis e potencialmente mais justos que a interpretação humana isolada, sujeita a erro, parcialidade ou demora.

Essa é a base de uma nova arquitetura do direito: uma infraestrutura regulatória embutida na própria lógica do código. Um direito que não depende apenas da mediação de tribunais, mas que é exequível por padrões verificáveis de comportamento digital. Um direito que, ao ser programável, não perde sua legitimidade, mas a redistribui em novas bases tecnológicas e sociais.

5. Conclusão: um novo ciclo da ordem jurídica

A tokenização inteligente não representa apenas um salto tecnológico na forma de negociar ativos do mundo real. Ela marca o início de um novo ciclo da ordem jurídica, no qual os contratos deixam de ser apenas declarações de vontade entre partes e passam a funcionar como sistemas autônomos, capazes de compreender, decidir e executar com base em lógicas formais e inferências contextuais.

Ao integrar inteligência artificial, blockchain e modelos jurídicos programáveis, a tokenização de ativos reais transforma a relação entre o Direito e a tecnologia. Não se trata de submeter a norma à técnica, mas de fundir ambas em uma nova expressão institucional: um Direito que é ao mesmo tempo legível e executável por máquinas, auditável por humanos e confiável por todas as partes.

Este artigo buscou demonstrar como a IA pode atuar como elo de viabilização entre a promessa tecnológica da tokenização e a realidade jurídica das operações com ativos reais. Das minutas contratuais à execução programada, da duediligence ao enforcement automatizado, cada etapa do processo pode ser potencializada por sistemas autônomos, transparentes e juridicamente compatíveis.

Cabe agora ao mercado assumir o desafio de construir esse novo ecossistema. Um ecossistema em que o direito deixa de ser obstáculo e se torna infraestrutura; em que o contrato deixa de ser promessa e se torna protocolo; em que a propriedade não é apenas reconhecida, mas programada. Este é o futuro que se anuncia. E ele já pode ser codificado.

Fernando Lopes e Marcella Zorzo são cofundadores do Lopes e Zorzo advocacia, primeiro escritório  doBrasil especializado em tokenização e finanças descentralizadas (DEFI).

São coautores do livro O Guia Jurídico da Tokenização.

Há anos realizam palestras por todo o Brasil para divulgar os benefícios da tokenização, especialmente para empreendedores.

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