Inauguro essa nova atividade, após 35 anos de serviço público militar e policial federal, apresentando ao leitor uma questão polêmica, real e atual, e que estará presente em cada passo de nossa rotina. Ao longo de minha carreira, aprendi que muitas ameaças à ordem pública, ao império da lei e soberania de um país não vêm com armas ou explosões — mas com chips, antenas e dados silenciosamente coletados.
O caso BYD e a coleta de dados
Nos últimos meses, um alerta internacional envolvendo a gigante chinesa BYD, maior montadora no mundo especializada em veículos elétricos, chamou a atenção de quem acompanha a atividade de segurança. O Ministério da Defesa de Israel proibiu que oficiais de alta patente utilizem modelos da marca — especialmente o BYD Atto 3 — após levantamentos indicarem o risco de espionagem por meio dos próprios veículos.
A preocupação não é infundada. Esses carros, além de modernos, vêm equipados com sensores, câmeras, microfones, GPS e sistemas de conectividade. Ou seja, verdadeiras plataformas móveis de coleta de dados. Segundo especialistas israelenses em cibersegurança, como o ex-chefe da divisão cibernética da Shin Bet, Dr. Harel Menashri, esses carros podem captar áudio, vídeo, localização, comportamento e até dados biométricos dos ocupantes — com potencial envio dessas informações à servidores no exterior.
Mesmo após tentativas de mitigação, como a desativação do sistema de chamadas de emergência (e-Call), a recomendação foi clara: não utilizar os veículos em ambientes estratégicos ou sensíveis.
Brasil: portas abertas e olhos fechados?
Enquanto outros países adotam medidas de precaução, o Brasil parece seguir na direção contrária. Em 2024 e 2025, a BYD firmou contratos de comodato (ou seja, cessão gratuita) com diversos órgãos públicos estratégicos. Veja alguns exemplos: o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebeu 20 veículos elétricos modelo Seal, avaliados em cerca de R$ 300 mil cada.
O Tribunal de Contas da União (TCU) recebeu inicialmente dois carros e estendeu o contrato para nove unidades.
A Presidência da República recebeu um SUV BYD Tan e um modelo Dolphin.
A Câmara dos Deputados também foi contemplada com um BYD Tan.
Todos esses veículos foram entregues sem custo direto ao governo, em contratos válidos por até dois anos. A justificativa oficial? Testar a viabilidade de frota elétrica e promover a transição energética. Não houve manifestação por parte de órgãos ou setores de inteligência.
Embora esses contratos estejam formalmente regulares, dentro do que prevê a legislação civil, o problema não é jurídico — é estratégico. A grande questão é: quem controla os dados que esses veículos coletam? E mais: é aceitável que autoridades dos mais altos poderes da República utilizem, no dia a dia, veículos potencialmente conectados a um Estado estrangeiro?
O risco invisível
Vivemos em uma era em que os dados valem mais que o petróleo. Saber onde está um ministro do Supremo, quais suas rotas, seus hábitos, horários e até conversas feitas dentro de um veículo é, para fins de inteligência, uma mina de ouro. E, se não houver controle total sobre o sistema embarcado nos carros, o risco de vazamento — ou pior, espionagem ativa — é real.
Israel não está sozinho nessa preocupação. Austrália, Estados Unidos e países da União Europeia têm adotado restrições crescentes ao uso de tecnologias chinesas em setores sensíveis, por entenderem que há uma ligação direta entre empresas como a BYD e o governo central da China.
Contexto final
A segurança nacional não pode ser tratada com ingenuidade. O fato de um equipamento ser “moderno” ou “ecológico” não o torna automaticamente seguro. Tecnologias não são neutras. E em tempos de espionagem digital e disputas geopolíticas, até um carro elétrico pode ser uma arma silenciosa.
O Brasil precisa acordar para os riscos estratégicos que corremos ao abrir mão do controle sobre os dados do Estado. Em segurança, o barato pode sair muito caro — e o gratuito, mais ainda.