A tokenização deixou de ser apenas um conceito tecnológico e passou a ocupar espaço real nas estratégias de negócios, investimentos e estruturação patrimonial. No entanto, apesar do entusiasmo do mercado, muitos projetos fracassam por um motivo simples: falta de clareza jurídica e estratégica desde o início.
Todo projeto de tokenização começa, na prática, com uma pergunta básica: o que exatamente está sendo transformado em token e por quê?
Da ideia ao enquadramento jurídico
Quando um empreendedor procura assessoria jurídica para um projeto de tokenização, ele normalmente apresenta duas coisas:
- O ativo que deseja tokenizar (um imóvel, um direito, um produto ou um ativo digital);
- Uma estrutura de negócio que, em sua visão, representa uma oportunidade relevante de mercado.
O papel do advogado — e aqui está um ponto frequentemente subestimado — não é apenas validar documentos, mas traduzir a lógica do negócio para o sistema jurídico, garantindo que o projeto seja viável, escalável e regulatoriamente seguro.
Esse processo pode ser resumido em duas etapas:
- entender profundamente o ativo e o modelo de negócio;
- enquadrar essa realidade nas regras jurídicas aplicáveis.
Sem isso, o risco de criar um token “bonito no papel”, mas juridicamente frágil, é alto.
O ativo, o token e o negócio não são a mesma coisa
Um erro comum no mercado é tratar o token como se ele fosse o próprio ativo. Na prática, são coisas diferentes.
Veja dois exemplos simples:
- Imóveis: o prédio existe no mundo físico. O token é apenas a representação digital desse imóvel, ou de um direito sobre ele.
- Itens digitais (como skins de jogos): tanto o bem quanto o token são digitais, mas ainda assim são entidades distintas.
Essa distinção importa porque:
- o ativo tem uma natureza econômica;
- o token tem uma natureza tecnológica;
- e o enquadramento jurídico depende de como esse token será usado e negociado.
Dependendo dessas escolhas, o token pode ser tratado como:
- um simples produto digital;
- um investimento;
- ou até um valor mobiliário, sujeito a regulação pesada.
O fator regulatório: Europa e Brasil não jogam o mesmo jogo
O ambiente regulatório varia significativamente de acordo com a jurisdição.
Na União Europeia, certas regras só se aplicam se o token for criado e transferido por tecnologias específicas, como blockchain ou sistemas equivalentes.
No Brasil, a legislação adota um conceito mais amplo: basta que o token represente valor e possa ser transferido eletronicamente para que ele entre no radar regulatório.
Para empresas que atuam globalmente, isso significa uma coisa: a tecnologia escolhida impacta diretamente a legislação aplicável. Ignorar esse detalhe pode resultar em custos inesperados ou inviabilizar o projeto em determinados mercados.
A grande ruptura: negociar sem bancos
A verdadeira inovação trazida pelo Bitcoin e pelas finanças descentralizadas (DeFi) não é apenas o token em si, mas a possibilidade de trocas diretas entre pessoas, sem bancos ou intermediários tradicionais.
Em termos de negócios, isso representa:
- menos custos de transação;
- menos risco de custódia;
- maior eficiência operacional.
É justamente por isso que reguladores ainda caminham com cautela nesse setor: trata-se de um modelo que elimina intermediários históricos do sistema financeiro.
Tokenização é, por natureza, global
Projetos de tokenização não respeitam fronteiras tradicionais.
As redes que processam essas transações são compostas por computadores espalhados pelo mundo, operando de forma colaborativa. Qualquer pessoa, em qualquer país, pode participar desse sistema.
Na prática, isso significa que:
- o comércio eletrônico deixa de ser apenas globalizado;
- ele se torna verdadeiramente transnacional.
E, pela primeira vez, bancos deixam de ser essenciais para transações internacionais digitais.
Smart contracts: automação no centro do negócio
Grande parte dessas operações ocorre por meio de smart contracts, programas que executam automaticamente regras previamente definidas.
Eles permitem:
- empréstimos sem intermediários;
- trocas instantâneas de ativos;
- operações financeiras entre partes que nunca se encontraram.
Um exemplo claro são os flash loans, empréstimos de curto prazo realizados sem garantias tradicionais — algo impensável no sistema financeiro clássico.
Arbitragem regulatória: oportunidade e risco
A natureza transnacional da tokenização abre espaço para a chamada arbitragem regulatória: estruturar partes do negócio em diferentes países para aproveitar vantagens legais, fiscais ou cambiais.
O uso de stablecoins, por exemplo, facilita transferências internacionais quase instantâneas. No entanto, seu uso inadequado pode caracterizar operações ilegais de câmbio, gerando riscos relevantes para empresas e investidores.
Aqui, a linha entre eficiência e ilegalidade pode ser extremamente tênue.
A pergunta que define tudo: por que alguém compraria esse token?
Antes de qualquer emissão, o empreendedor precisa responder a duas perguntas fundamentais:
- Qual problema esse token resolve?
- Que benefício econômico ele entrega ao comprador?
No fim do dia, não importa o nome do token, mas o que ele representa de fato. Um token é apenas um registro digital; o valor está no ativo ou direito por trás dele.
Quando a tokenização realmente faz sentido
Tokenizar algo apenas por moda raramente cria valor sustentável.
A tokenização se torna poderosa quando:
- reduz drasticamente custos;
- elimina intermediários;
- permite negociações diretas entre compradores e vendedores;
- amplia o alcance global de bens e serviços.
Nesse cenário, surgem modelos de negócio mais eficientes, preços mais competitivos e novos mercados.
O desafio jurídico à frente
Esse novo modelo de comércio digital traz ganhos evidentes, mas também impõe desafios jurídicos profundos. A ausência de intermediários muda completamente a lógica de proteção ao investidor, fiscalização e responsabilidade.
Para empreendedores e investidores, a lição é clara: tokenização não é apenas tecnologia — é estratégia, regulação e governança.
Quem entende isso antes de emitir o primeiro token tem muito mais chances de sucesso.



